terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Os três artigos da Lei do mais forte no trânsito

A LEI DO MAIS FORTE E O DESEJO DE MUDANÇA


E. J. Daros


A melhor forma de se conhecer um povo é observando e analisando seu comportamento no dia-a-dia, principalmente em situações de conflito. A partir da observação empírica, procura-se descobrir as regras de convivência social e a hierarquia dos valores sobre a qual se estrutura a personalidade e o comportamento dos indivíduos.


Importante, também, é se conhecer o grau de esquizofrenia prevalecente na sociedade. Para isso nada melhor do que comparar a realidade vivida e sentida por meio da observação empírica, com as leis, regulamentos e valores constantes de textos escritos.


Faz muito tempo que observo, com a máxima atenção, e o mais profundamente possível, nosso comportamento, isto é, meu comportamento e o das pessoas com quem me relaciono no dia-a-dia. Por razões de trabalho, tenho tido a oportunidade de conhecer pessoas de todas as regiões do País e de diferentes camadas sociais. Mais recentemente, na condição de fundador e presidente da Associação Brasileira de Pedestres–Abraspe, passei a pesquisar as causas mais remotas da chamada violência no trânsito.


Depois de muito pensar e observar cheguei à LEI DO MAIS FORTE. A importância dessa Lei já é conhecida pelo povo brasileiro desde tempos remotos. Ela está na raiz e na origem de nossa cultura. Todas as outras leis e regulamentos são-lhe hierarquicamente inferiores. Na realidade, a Lei do Mais Forte está inserida na Constituição Invisível que rege soberanamente nossas relações sociais. São três artigos que devem ser analisados e bem entendidos pelos cidadãos para não sofrerem as conseqüências de sua desobediência.


Artº 1º: Nas soluções de conflito entre pessoas e grupos prevalecem os interesses do mais forte;


Artº 2º: Os direitos do mais fraco podem ser exercidos desde que não prejudiquem os interesses do mais forte;


Artº 3º: O mais fraco deve tomar rapidamente consciência de sua situação, a fim de evitar conflitos que possam obrigar o mais forte ao uso da violência física ou psicológica no cumprimento do Art.º 1º.


Ao ler esses três artigos da Constituição Invisível de nosso povo, há uma tendência de se estereotipar a sociedade em duas classes: os opressores e os oprimidos; e com isso, perde-se a visão objetiva da realidade, em que os papéis de forte e de fraco se alternam num mesmo indivíduo. É óbvio que certas pessoas, normalmente pertencentes às classes sociais de renda baixa, representam mais freqüentemente o papel de fraco e, as de renda mais alta, o papel de forte. Porém, certos tipos de relacionamento, dentro da mesma classe social e, em muitos casos, no seio da própria família, demonstram, claramente, que a Lei do Mais Forte se aplica a todos os cidadãos, independentemente da classe a que pertencem.


Os liberais, os humanistas, as feministas, os democratas, e outros que insistem em certas teses igualitárias acabam gerando leis e regulamentos “inconstitucionais”. Em decorrência disso ficam nas prateleiras, pouco ou nada influindo sobre a nossa realidade.


Os conflitos gerados no trânsito e a forma de solucioná-los são um bom exemplo para demonstrar a validade da Lei do Mais Forte.


Antes de apresentar dois exemplos de aplicação dessa Lei é importante não esquecer que as outras leis e regulamentos são-lhe hierarquicamente inferiores. Por conseguinte, o cidadão comum encara os regulamentos de trânsito como uma simples proposta de solução de conflitos, e não como regras a serem obedecidas em qualquer hipótese. Elas são respeitadas, portanto, quando convém ao mais forte. Os exemplos a seguir ilustram bem essa situação.


Sinalização de Pedestres


Ela é respeitada pelo motorista quando há risco de se chocar com outros veículos (cruzamentos) ou quando a massa de pedestres é muito grande, gerando um equilíbrio de forças. Se o volume de pedestres for exageradamente grande, de fraco, passa a forte, invadindo a via pública, em detrimento da circulação dos veículos.


No caso de São Paulo os veículos param nos cruzamentos (risco de batida!) , porém em cima das faixas de pedestres (quando o volume de pedestres é pequeno) , porque o semáforo fica depois do cruzamento e nessa condição podem ver a troca de sinal. No Rio de Janeiro, os motoristas não param em cima da faixa de pedestres, porque o semáforo fica antes do cruzamento e se nela estacionassem perderiam a visão da troca de sinal (risco de batida).


Consequentemente, é o medo de bater em outro veículo que faz o motorista parar nos cruzamentos, e não o respeito ao pedestre.


Fora dos cruzamentos, a sinalização de pedestres é normalmente desrespeitada. Nesses casos, os atropelamentos não acontecem com mais freqüência em razão da aplicação dos artigos 2º e 3º da Lei do Mais Forte.


Quando o motorista acena para o pedestre amedrontado cruzar a rua, ele está pondo em prática o artigo 2º, que reza: “Os direitos do mais fraco (no caso o pedestre) podem ser exercidos desde que não prejudiquem os interesses do mais forte (no caso o motorista)”. Seja porque não está com pressa, ou porque deseja ser bondoso, há muitos casos de motoristas que acenam aos pedestres nesses cruzamentos, permitindo-lhes exercer os direitos previstos nos regulamentos de trânsito.



Quando os pedestres esperam que todos os carros apressados passem e aguardam que os demais parem, para depois iniciar a travessia, mesmo que o sinal lhe autorize a fazê-lo antes, eles estão sabiamente aplicando o artigo 3º, que diz:


“O mais fraco (no caso o pedestre) deve tomar rapidamente consciência de sua situação a fim de evitar conflitos que possam obrigar o mais forte (no caso o motorista) ao uso da violência física ou psicológica no cumprimento do artigo 1º .


Trânsito nas Rodovias



Na estrada, a hierarquia de poder é bem definida: caminhões e ônibus, de um lado, e automóveis, do outro. Normalmente, o motorista de automóvel inteligente, após dar sinal de luz e buzinar, aceita eventuais obstruções de caminhões e ônibus ( Art.º 3º ) e aguarda a aquiescência para completar a passagem ( Art.º 2º ) .


Acredito que os dois exemplos acima sirvam para ilustrar a universalidade da Lei do Mais Forte no trânsito de nosso país. Como substituí-la, então, por leis e regras de uma sociedade democrática, igualitária e mais humana?


Há dois caminhos: o primeiro, o mais fácil de ser trilhado, é inundar a Nação de textos humanistas, democráticos e igualitários; o segundo, extremamente difícil e doloroso, é reconhecer nossa condição pessoal (não a dos outros!) de antidemocrata, e, porque não, anticristã, e de cultor anônimo da Lei do Mais Forte.


A Constituição visível é mais fácil de mudar que a invisível. O exorcismo de nossos males através de bodes expiatórios nos afasta da visão deprimente de nossos próprios valores e comportamento. A violência no trânsito, a corrupção desenfreada, a desonestidade profissional, a poluição, a estruturação de nossa economia com base em monopólios, os abusos de poder e tantos outros males que nos afetam são gerados por nós, cada um contribuindo com sua parcela.


Como no trânsito pouco ou nada mudou, e nele se expressam os valores e o comportamento da população que também estão presentes em todas as outras relações fora do trânsito, o nosso país continua o mesmo.


Uma outra forma de fugir à mudança real é atribuir ao Estado a responsabilidade pela mudança. E não faltam falsos líderes, sequiosos de poder, para assumir essa responsabilidade, mesmo sabendo que não têm condições de desempenhá-la.


Será que está na hora de mudar mesmo? E acabar com os falsos líderes que a título de pensamento positivo só elogiam as qualidades do povo brasileiro, para em seguida explorá-lo, aplicando-lhe a Lei do Mais Forte?


F I M



Nota: Artigo Publicado em Idéias em Debate em O Estado de S. Paulo de 16/03/85

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